quinta-feira, 19 de março de 2015

Uma ideia, uma música, um café, um futuro

Olhava na tela o arquivo ainda em branco. Retorcia-se na cadeira tentando parecer bem-sucedido, não sabia para quem ou para quê, talvez para si mesmo. Não entendia porque estava tão travado... não era isso que queria? 

Era jovem, havia iniciado sua faculdade. O trabalho que o travava naquele momento era o primeiro que iria fazer. Precisava discorrer sobre 'perspectivas de qualidade vida e futuro de sucesso no mundo de hoje tendo em vista algumas correntes filosóficas que estava estudando'. Com leve desapontamento lembra-se que havia se gabado em sala com quem estava em volta, não lembrava quem... O fato é que havia se gabado dizendo que o trabalho era ridículo, que esperava mais da esfera acadêmica...

Pegou seu computador, foi àquele café que gosta de ir, colocou fones de ouvido, e ouvia Chopin tocando piano. Gostava daquele piano, suave e meio triste... Triste não era bem a palavra, não sabia definir, mas sentia que aquilo combinava com o momento. Assim como, o copo de café, a mesa daquele lugar com tons escuros, luminárias bonitas, sofás e pessoas pareciam combinar... Combinar com seu arquivo em branco?

Frustração! Era isso que sentia agora. De repente começou a se questionar se havia escolhido o curso certo, se havia escolhido a cidade certa. Só o que fica muito claro antes de sua decisão era a vontade de sair de casa. Foi precipitado? - Não! Balançou a cabeça desaprovando e afastando de si aquele pensamento. Enfim, era essa sua realidade agora e tinha que lidar com ela. E verdadeiramente o novo, o desafio, a independência, o incerto eram bem estimulantes. Havia um mundo de possibilidades. Estava em uma boa universidade, ali havia possibilidades de pesquisa científica, estágios, intercâmbios e mais... Mas se não conseguia escrever uma porcaria de trabalho introdutório como poderia sonhar em conseguir algo assim? 

Desafiando o arquivo em branco estala os dedos e escreve: "São numerosas as possibilidades de...". De o que? Parou, e o pensamento foi longe. Possibilidades, como as que analisava dia e noite antes de vir parar nesse curso e nessa cidade. Nunca entendeu porque as pessoas eram empurradas tão cedo a esse tipo de decisão. Estava preparado? Com o rosto subitamente empalidecido lembra-se do grande desconforto de seus pais a respeito de sua decisão. Lembra-se das inúmeras orientações e súplicas de sua mãe para que "não esquecesse quem ele era". Quem eu sou! Hum, um pensamento útil se falamos de filosofia, o mais clichê de todos. Mas ainda nenhuma ideia... 

Preso ainda no pensamento sobre os sermões de seus pais, pensa como seria divertido se eles soubessem o que dizem esses filósofos sobre os valores que eles sempre defenderam... Seria divertido ver o choque no rosto deles! Ahh nem tanto, seus pais eram pessoas esclarecidas, já sabiam dessas opiniões e nunca se viram desmoralizados por elas... Talvez fosse isso que o estivesse travando, as teorias em que deveria de basear eram contrárias ao que havia vivenciado até então. Será? Talvez fosse apenas um conflito de ideais. Absurdo! Não poderia deixar que isso fosse estritamente sobre sua experiência pessoal, tinha que ser mais... flexível?

Revisando alguns pontos daquelas teorias em que deveria se basear reafirmou o quanto discordava de tudo aquilo. É claro que haviam pontos obscuros, abertos para discussão, mas em uma visão ampla: discordância. O piano de Chopin estava especialmente lindo e melancólico agora... Gostaria de ter aprendido a tocar piano! Hum talvez ainda aprendesse... A verdade é que tinha essa ideia fixa que era muito velho para começar a aprender. Mas tinha outras metas em mente, muitas, muitos sonhos e planos. Sorriu... Seu sorriso era melancólico como a música que ouvia. Será que conseguiria fazer tudo aquilo que sonhava? Era realmente algo para se questionar, principalmente se considerasse que alguns de seus planos eram totalmente contraditórios à outros... Depois de alguns instantes de pensamento vago, percebeu que Chopin não estava mais tão melancólico, e ele decidiu não estar também! 

Qualidade de vida e futuro! Qualidade de vida e futuro? O que tinha a dizer sobre isso? E mais, o que tinha a dizer sobre isso à luz desses filósofos? A verdade é que eles não conferiam nenhuma luz. Não colaboravam muito com sua linha de raciocínio... Sorriu pensando que sua mãe diria: "Bravo"! Desde que havia chegado ali via tantas coisas que o faziam questionar os valores que tem, ou tinha, ou que tem ainda... É claro que não saía por aí comentando sobre suas opiniões, afinal, as pessoas são livres para fazer o que querem, não é? Mas algumas atitudes o afetavam mais do que gostaria. Em sua cabeça parecia tão simples que as pessoas não deveriam fazer coisas estúpidas que levam à desvalorização de si mesmas e à sucessão de eventos sem sentido. Opa, seus pais ficariam felizes de novo...

O fato é que se sentia profundamente privilegiado por ter crescido em um ambiente que lhe mostrava valores, que inspirava sonhos e metas, que tinha regras, bem irritantes às vezes, mas que o ajudaram a refletir e entender muitas coisas. Entendia que isso não era muito comum hoje em dia. Tudo é moderno e permitido. Nunca foi um perfeito obediente de regras, sempre questionou e lutou, mas sempre encontrou espaço para ouvir e ser ouvido. Achava que todos mereciam essa chance... mas afinal, o que tinha ele a ver com todos? Nada! Nada?

Mas não podia negar que era meio triste. Estava tão ansioso pela faculdade, pela vida adulta, e a maioria do que via lhe parecia perda de tempo. De repente ouvia em sua cabeça, as vozes dos dois caras com quem estava dividindo o apartamento: "Relaxa"! De certa forma compreendia que sua atitude e negação à certas coisas incomodava os outros. Não queria incomodar, queria ser 'cool', mas não queria deixar de ser quem era. Isso era tão irritante.

Festas e porres, relações casuais e total despreocupação com quase tudo, a não ser aparências. Nada disso o seduzia muito. É claro que algumas facilidades que já existiam antes e que se tornaram mais fáceis ainda eram bem interessantes... Sorriu, um sorriso malicioso. Parou. Não era isso que queria. O que queria então? Qualidade de vida e futuro de sucesso? Riu novamente. O problema é que as tendências que via ao seu redor e as ideias apresentadas por aqueles caras que ele tinha que estudar não estavam em consonância com o que imaginava ser bom... Chopin estava em consonância com o que estava sentindo agora - ele riu. Hum e aquele café também! Que havia acabado por sinal. Levantou-se e comprou outro. A moça que o atendeu tinha um sorriso bonito, ele a via ali regularmente, e gostava quando ela o atendia. 

De volta ao arquivo em branco! Totalmente em branco porque já havia apagado as poucas palavras que escreveu. Sentiu falta de casa, das promessas de futuro luminoso, do bom e do belo de que ouvia falar e experimentava em sua pequena cidade, nos círculos que frequentava. Estava tão longe de lá agora! Estava longe das pessoas queridas, dos aromas familiares, das conversas sobre o desconhecido. É certo que ele vivia o tal desconhecido agora, e não lhe parecia tão maravilhoso como imaginava. É claro que já conhecia todas essas realidades, esses conceitos que agora estuda, essas tendências que testemunha e que estiveram sempre ao seu redor. E quando não estavam ao seu redor estavam estampadas em capas de revistas, em jornais e programas, em modas e estilos musicais. Afinal de contas, não era nenhum alienado! Nada disso que o incomodava era surpresa, e então, por que o incomodava mais agora?

Talvez porque agora se sentia mais pressionado a se deixar levar pela maré que o circundava. Ahhh... Que irritação! Ainda bem que o café tinha um efeito de consolação impressionante. Pensou em seus sonhos, nas razões que o levaram até ali e nas teorias em que deveria se basear para escrever. Ninguém disse que ele não poderia discordar daqueles filósofos! Aliás, somente esse pesamento já o encheu de esperanças. Mas ainda não queria que seu texto fosse muito pessoal, não queria que fosse simplesmente algo sobre si... Refletindo um pouco, levantou as sobrancelhas e torceu a boca, e concluiu que não era definitivamente somente sobre si! Percebeu que o que pensava e acreditava eram realmente propostas para todos, especialmente para aqueles que estavam em seu convívio ultimamente. Ele acreditava naquilo! Acreditava em sua eficiência! Acreditava no luminoso, no bom, no belo. Sorriu...

Tomou mais um gole de seu café, percebeu que Chopin tocava mais animadamente seu piano, esticou os braços para frente, e com brilho no olhar e dedos rápidos, começou a escrever.   

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